16 de julho de 2010

Crueldade


Naquela hora, não havia muito para se fazer exceto esperar. Precisava falar com um deputado e com o representante da federação estadual de comércio da minha região, mas ambos só estariam disponíveis dentro de algumas horas. Sem ter muita opção, adiantei serviços pendentes, fiz alguns telefonemas importantes e programei as tarefas que precisava realizar ao longo da semana. A falta do que fazer alimentava a tensão que eu sentia em função da situação pífia na qual o jornal onde eu trabalhava se encontrava. As brigas entre os gestores tomavam proporções épicas e sabíamos que as mudanças seriam grandes, só que sem qualquer ideia de como elas ocorreriam. A única certeza era a de que muitas cabeças rolariam.

Após esgotar todas as distrações possíveis, mergulhei num copo de café e já pensava em partir para o próximo quando Lucas Salgado, meu editor, entrou na redação. Ele tinha uma expressão de tranqüilidade tão constante que me dava inveja. Mas não era uma calma budista, e sim uma expressão mais blasé, completamente indiferente ao que acontecia ao seu redor. Sorrindo, cumprimentou todos os repórteres e foi se sentar. Eu sabia que ele tinha acabado de sair de uma reunião com a cúpula do jornal, mas ele evitava comentar o que se falava lá dentro sobre o nosso futuro.

Lucas passou por mim, as parou alguns segundos após me dar as costas. Virou-se rapidamente e abriu a boca, mas algo o calou antes que pudesse dizer qualquer coisa. Fingiu que nada tinha acontecido e foi para sua mesa, onde abriu lentamente um saco de biscoitos enquanto o computador era iniciado. Já tinha praticamente esquecido dele quando a janela do programa de bate-papo piscou no canto da minha tela. Era ele.
Naqueles tempos, quando a falta de informações sobre o futuro do jornal fazia com que qualquer migalha de iluminação fosse bem-vinda, as conversas pela Internet eram a única maneira de manter certos assuntos em sigilo. A ansiedade fez com que o curto espaço de tempo em que a janela se maximizava fosse semelhante a virar a página de um romance policial justo na hora e que o nome do assassino seria revelado.

“Preciso de você amanhã na reunião de pauta. Só para sentir como é o clima e já ir se familiarizando”, ele disse. Comparecer à reunião de pauta era a garantia de que minha permanência no jornal era extremamente provável, mas eu queria saber mais. Não precisei dizer nada, mas tenho certeza de que ele sentiu isso. Por isso continuou, antes que perguntasse. “Miguel, não sei o que nos aguarda. Mas vou manter só você e Bernardo na nossa editoria. Todos os outros serão demitidos. Você vai deixar de ser estagiário e ficará efetivado”.

Assim que li a última frase, deixei meu olhar subir lentamente até alcançar meus companheiros de editoria. Eu estava ali há duas semanas enquanto alguns deles já sentavam naquelas cadeiras há meses. Mesmo assim, eu era o único que permaneceria. Por mais que eles não estivessem cientes daquilo, nascia ali uma relação de poder inerente a todo resto. Cabia a mim fazer uso daquilo da maneira que bem entendesse ou ignorar completamente sua existência. Em dado momento, eu e mais alguns estagiários sentamos para conversar. O assunto não poderia ser outro.

“Ninguém sabe de nada, né?”, perguntava Cíntia, que fazia parte de outra editoria. “O clima é pesado e ninguém passa nada para a gente”, reclamava, cabisbaixa.

“Eu ando muito tensa, não sei nem o que pensar”, disse Carla, que foi uma das primeiras a ganhar minha simpatia. Apesar de ser nitidamente detestada pela sua chefe, um retrato vivo da arrogância, ela era cativante. Simples, vívida e sempre disposta a ajudar, até seu jeito de reclamar tinha charme. “Eu sou estagiária, né? Nós somos a parte mais baixa da cadeia. Nós somos os mais fudidos, com certeza. Tenho um monte de contas para pagar”, finalizou, percebendo que não deveria ter deixado escapar aquela última frase.

Quando adolescente, li um conto japonês que falava sobre a caça. Nele, um menino perguntava ao irmão mais velho porque ele tinha como esporte matar outros animais. Com uma arma na mão e um cervo morto aos seus pés, ele simplesmente disse “porque eu posso”. O caçula continuou sem compreender, mas o rapaz explicou.

“Deixe todos em situação de igualdade e a convivência será sempre pacífica. Coloque um pouco mais de poder nas mãos de alguém, aí sim você conhece uma pessoa de verdade. Existe um prazer mórbido na caça, que é o de superação. É a mesma coisa com os jogos de poder. Você o exerce simplesmente porque o tem. É nojento, mas é isso”.

Bebi mais um gole de café com o conto na cabeça enquanto todos ainda digeriam o silêncio que reinava após a frase de Carla. Parte de mim queria gritar a plenos pulmões que meu nome estava escrito no eterno livro da vida, mas eu jamais conseguiria fazer aquilo. Acho que nem se os odiasse completamente eu conseguiria. Não há maior injustiça para o morto que deixa o mundo do que saber que os vivos continuarão e ele ficará para trás. A situação fazia com que me sentisse estranho, impregnado algo que eu não queria carregar. Fiquei ainda pior quando Afonso me chamou.

“Miguel, quero te ensinar umas paradas no programa de edição”, avisou, sorrindo. De longe, ele era o mais prestativo e simples dos estagiários, além de ser um dos mais esforçados. Sabia que sua falta de talento fazia dele um dos primeiros nomes na lista de demissão, o que só me fez sentir mais enjoado. Sentado no meu computador, eu escutava os editores digitando em seus teclados os nomes dos que ficariam e daqueles que iriam embora, como incontáveis listas de Schindlers espalhadas pela redação. Escolhendo os vivos e os mortos, eles exerciam seu poder da maneira que julgavam melhor. Quanto ao meu quinhão do mesmo, preferia manter em sigilo absoluto.

Deixamos a redação relativamente cedo naquela noite. Novo no local, fui alvo de um sem-fim de perguntas. Aline, Cíntia e Carla procediam uma entrevista na qual as perguntas sequer esperavam o fim das minhas respostas. Achei tudo aquilo engraçado, mas tentava evitar mostrar até isso.

“Você estuda aonde mesmo?”, dizia uma.

“Eu sou da faculdade estadual de ...”.

“Nossa, o pessoal da editoria de vocês rala muito, né?”.

“É, mas realmente gosto do que eu...”.

“Tenho certeza que conheço você de algum lugar”.

“Também tive a mesma impressão quando te vi, mas não sei de...”.

“Vamos de van?”.

Só então descobri que uma van levava alguns empregados do jornal para um terminal rodoviário próximo, onde tinham condução para praticamente qualquer lugar da cidade. Concordei em acompanhá-las e só então percebi que Fernando estava à nossa frente. Era um moreno alto, bonito e que foi contratado no mesmo dia que eu. Polido ao extremo, era bem articulado e era charmoso. Não precisava ser muito inteligente para reparar que ele era do tipo que atraía um pouco mais os olhares. Caminhando sozinho na frente, ele parecia completamente alheio a conversa.

Quando chegamos na van, tive vontade de sentar na frente para ficar um pouco só, mas percebi que não seria exatamente educado da minha parte. Fiquei atrás e o próprio Fernando entrou na frente. Ao reparar o rapaz sozinho, Carla tentou ser simpática. Por alguns momentos, a tensão parecia estar em segundo plano.

“Ei, estagiário não senta no banco da frente não! Ainda mais no primeiro dia na van!”. As outras pessoas riram, até que Fernando respondeu, sem virar o rosto.

“A diferença é que não sou estagiário”.

O peso do silêncio que veio logo após aquela frase foi tão grande que todos se sentiram novamente puxados para dentro do clima opressivo do jornal. Nosso Gueto da Cracóvia em forma de redação viva seus dias de pré-holocausto e não era difícil ver o sorriso no canto do lábio daqueles que sabiam que permaneceriam vivos. Não havia outro nome para aquilo senão crueldade, em sua forma mais crua. Fernando não sorriu, não falou em tom de brincadeira. Apenas provou o gosto do poder e vestiu os olhos do desprezo. E naquele momento eu tive certeza de que um dia ele seria vítima daquela mesma crueldade no futuro. Certeza absoluta.

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