3 de junho de 2010

Cangaço urbano e cor-de-rosa


Quarta-feira, Gávea. Paro em frente ao “Mistura Chic”, que fica na mesma galeria do meu antigo trabalho. Eu e a vitrine do local nos encaramos por alguns segundos, olho no olho. O mundo ao nosso redor para e só o que importa é a tensão dos poucos metros que nos separam. O vento sopra, ninguém passa. Eu e a loja travamos um duelo, como nos velhos filmes de cowboy. O ar é pesado, ela tenta me intimidar com sua feminilidade.

“Vá embora, você não pertence a esse lugar”, sussurra a vitrine, mesmo sem palavras. “Você não vai se livrar de mim assim tão fácil. Eu preciso de um presente, e é aí que vou achá-lo”. “Você não terá coragem de entrar”, desafia.

Os minutos passam, cada um dos lados têm suas armas. A loja tem uma vendedora que me olha com curiosidade enquanto o tempo passa, eu tenho meu orgulho masculino que não se deixa vencer por uma loja de roupas de mulher.

“É uma mera loja de roupas, seu cabra frouxo. Entra aí e se vira”, diz o descendente de cangaceiro dentro de mim, com uma peixeira na mão e um rifle nas coisas. As sobras do meu diluído sangue nordestino realmente correram nas veias do Cangaço e agora se irritavam com a minha atitude. “Meu Deus, é uma loja de roupas de mulher. Como diabos você pretende sair daí vivo? Se entrar, é capaz de nunca mais ser o mesmo”, insiste a minha timidez.

Boto as mãos no bolso, faço cara de mau, o cangaceiro vence o duelo. No momento em que entro na loja, sinto todos os olhares na minha direção. A vendedora faz uma cara estranha e até o boa tarde soa nitidamente diferente. Não é só impressão minha, pois quando paro para ver as peças e olho rápido para fora, vejo que o guarda da galeria, o porteiro do prédio e a atendente da papelaria em frente me olham. Nos dois primeiros, sinto um espanto tão grande que não me surpreenderia se eles pensassem que estou buscando algo para mim. Já na atendente não, vejo o respeito de uma mulher que reconhece o abismo que separa uma loja feminina de um homem. Entrar sozinho num lugar desses é algo que assusta qualquer criatura do sexo masculino. Talvez não os gays, mas eles não contam.

“Você tem 38 desse aqui?”, eu pergunto, mostrando um vestido lindo que achei. “Não, só tenho 40”, responde a vendedora. “E desse?”, insisto, com um não tão bonito. “Também não”. O nervoso toma conta de mim, estou sozinho e perdendo as minhas armas. Eu venci o duelo, mas a batalha foi inútil e a guerra estava apenas começando.

Os confrontos se arrastam por vários lugares do Rio de Janeiro, mas a vítima é sempre a mesma: meu tempo. Gávea, Botafogo, Vila Isabel, Centro, Tijuca. A cada viagem de ônibus para outro lugar da cidade eu voltava meus olhos para o relógio do celular. O nervosismo era tanto que eu sempre o sentia vibrando no meu bolso, às vezes até escutava “About a Girl”, música que toca quando minha senhora liga. Cada segundo perdido me deixa mais próximo do aniversário dela e eu lamento a falta de pesquisa no ramo de viagens temporais. Eu facilmente me candidataria a ser cobaia para voltar uns dias no tempo.

O último reduto é o Shopping Tijuca. Falhar ali significaria voltar a qualquer um dos outros lugares pelos quais eu já tinha passado para comprar algo que não despertou minha atenção. Durante minha busca, passo em frente à Saraiva Mega Store. Entro e rapidamente acho um livro que me interessa, “Doutor Passavento”. Parece interessante, certamente ela gostaria.

“Cabra frouxo”, sussurra o cangaceiro dentro de mim. Ele está certo. Desde que decidi comprar um presente de aniversário para Deborah, escolhi que seria uma roupa. Era um desafio ao mundo feminino, algo como botar o dedo na cara dos deuses do Olimpo (especialmente Afrodite) e dizer “Ei, eu também tenho bom gosto o suficiente para escolher um pedaço de pano que te agrade. Isso não é privilégio seu, mulher”.

Mas “Doutor Passavento” realmente é atraente. Paro, olho. Acho que ele será um presente para alguma próxima vez. Volto correr pelo shopping e eis que sou surpreendido por ele, “o vestido”. Assim que nos olhamos, gostamos um do outro. Apreciei seu estilo e ele minha boa vontade de comprá-lo. Foi numa loja cujo nome não sei, no segundo andar, ao lado do B-52. Caminhei triunfante, eu tinha vencido.

Era um vestido de alças leves, jeito simples e bem casual, mas mimoso ao extremo. O vendedor me vê entrando na loja e logo me apresenta a ala masculina, mas eu aponto para a roupa que quero e ele sorri. A proximidade do Dia dos Namorados facilita a aproximação, mas não torna menos doloroso o golpe que recebo em seguida. Por mais casual que fosse, o vestido custava mais que uns dois ternos razoáveis juntos, seria capaz de bancar mais de dez noitadas minhas e foi o suficiente para acabar com o meu ânimo.

Quinhentos e sessenta e nove reais e noventa e nove centavos. Falando por extenso, dói mais. “Nem eu sou macho o suficiente para isso. Não se avexe não, rapaz”, consola o cangaceiro. Um grande vestido valeria isso, mas uma roupa informal daquelas com aquele preço? Só seu meu padrão social fosse bem diferente. Amaldiçôo minhas origens humildes e a sina de escolher roupas caras, mas não perco a pose. O vendedor e uma gerente me olham tão esperançosos que eu mesmo tenho pena de quebrar seus sonhos.

“Tem 38?”, pergunto, deixando os dois em êxtase. “Tem!”, exclamam ambos. “Merda”, penso, quase deixando escapar a palavra. Eles me mostram, a gerente faz questão de experimentar o vestido nela mesma e ele realmente é muito bonitinho, mas não o suficiente para o preço que cobra. “Lindo, não?”, ela pergunta, me mostrando a roupa. “Acho que vou levar”, minto. “Segura ele para mim que volto já”, digo, saindo dali para nunca mais voltar.

Uma última loja me separa do fracasso. Já fui em todas as vitrines, nada me agradou. Nessa última, também não achei nada que me chamasse atenção, mas sabia que lá dentro encontraria algo bom. Sempre gostei dela. No Natal, uma amiga minha ganhou uma roupa de lá, mas não gostou, foi trocá-la e pediu minha ajuda. Achei várias peças que julguei bonitas dentro do meu limitado gosto masculino. O problema é que o desânimo era tanto que eu não encontrava coragem de entrar.

Sem exagero, acho que fiquei cerca de meia hora indo e voltando para frente da loja. Nem o cangaceiro me falava mais nada, ele já tinha ido embora escalpelar alguém com sua peixeira, impaciente com minha falta de coragem. Eu estava só, privado até da minha timidez, que ficou desacordada e sem forças após as várias incursões em lojas femininas. No fim, o que me empurrou lá dentro foi o relógio.

“16h30!”, exclamou. Ou é ali, ou é a morte. Respiro fundo e entro. Uma das vendedoras vem na minha direção com um enorme sorriso, “No que posso ajudá-lo?”. Peço sugestões ou um tiro de misericórdia, bem entre meus olhos? Nenhum dos dois. Se fosse fazer algo, faria sozinho, tanto escolher a roupa quanto me matar. “Não, não precisa não. Estou só dando uma olhada”, respondo, e estou só de novo.

Passo as peças com cuidado e me decepciono com a grande maioria. Algumas são bonitinhas, mas não me chamam a atenção. Outras não tem nada a ver com a minha namorada. “Maldição, ela não poderia ter aceitado o pedido de namoro no dia 13 de junho? Assim não teria nem aniversário nem Dia dos Namorados e eu só precisaria dar alguma coisa no Natal! Teria quatro longos meses para sondá-la o suficiente”, eu penso.

Mas minha raiva acaba quando ponho os olhos num vestido xadrez vermelho. Ele também é de alças simples, jeitinho casual, leve, lindo. Ah, e ele não custa o preço de dois bons ternos. Quando pego o cabide e viro para trás procurando minha vendedora, percebo que todas elas estão olhando para mim. Era como um paredão de fuzilamento de uma ditadura comunista. Acho que seu eu fechasse os olhos, sentiria até o sol de Havana me queimando o rosto e o cheiro do charuto de Fidel , que comandava a execução.

Não peço clemência, mas elas sorriem. “Boa escolha!”, diz Paola, a vendedora. Todas parecem animadas. São vendedoras, claro, querem fazer o dinheiro delas. Mas sinto certa sinceridade em seus sorrisos. Posso não ser um especialista em moda, mas acho que escolhi algo bom. Pego o tamanho dela, Paola diz algumas coisas e eu me apresso para o caixa. Pago, olho o relógio e sinto o doce sabor da vitória. Só então percebo que meus pés doem por ter andado o dia inteiro. Também estou cansado mentalmente. Permanecer são numa guerra daquelas é um esforço épico. É só olhar para os veteranos da 2ª Guerra, todos loucos. E eles enfrentaram outros homens, e não o insondável universo feminino.

Agradeço a Paola e vou embora dali. Saio de cabeça erguida, o único homem vivo na loja feminina. Me sinto caminhando por uma montanha de corpos de outros rivais do sexo masculino que morreram ainda na vitrine, incapazes de adentrar um lugar daqueles sem uma amiga conselheira ou um amigo gay. Eu tenho os dois, mas meu ego pavimentou a decisão de ir só. Sorrio. Não sei se ela vai gostar, mas ainda estou orgulhoso. O cangaceiro senta ao meu lado e me oferece uma pinga braba. “Eu não teria feito melhor”, ele elogia.

Já do lado de fora, escuto a voz de Paola, que berra. “Boa sorte com o presente!”. Não consigo resistir e ficar corado enquanto sorrio, me viro e agradeço novamente. O cangaceiro ri, mas ainda divide a pinga comigo.

“Macho também fica vermelho, homem!”, consola.

Ps.: ah, essa aí do lado é ela. Acho que gostou do vestido, tanto que ficou com ele na festa de aniversário. 1 a 0 para os homens que sabem escolher roupas.

9 comentários:

Bárbara disse...

Parabéns por ter coragem de entrar numa loja feminina e ainda acertar o gosto. Nao é todo homem que faz isso! Se tiver duvida quando a roupa pode consultar nosso blog de moda hehehe
Gostei do blog!
http://pluiedemode.wordpress.com/

Ítalo Richard disse...

Cara, que texto bacana, ri em vários momentos, acho que por já ter passado pela mesma situação. É realmente constrangedor quando você tem que entrar numa loja feminina e escolher algo, é muito estranho, eu pelo menos não fico a vontade, fora que para sair mais depressa daquele local acabo escolhendo a primeira coisa que vejo e nem sempre acerto no alvo. É trágico, mas é ainda mais cômico!

Parabéns, achei muito legal o texto.


www.todososouvidos.blogspot.com

Thalita Santos disse...

haha,como já disse lá na comu me diverti com sua descrição sobre a sua fobia de lojas femininas.Mas valeu a pena,lindo vestido xadrez.

bj !

Anônimo disse...

muito, muito bom o texto... divertida leitura!!!

Unknown disse...

hehehehe se deu bem na loja neh!
asuhaush'
gostei

beijos

Dani! :]

Anônimo disse...

Realmente a matéria é a mais completa que já vi, seu feito gedor quando você tem que entrar numa loja feminina e escolher algo realmente é um feito fazê-lo bem e ainda sair como um homem lidimo... risos...

Pouls disse...

Ficou Good
mto bom

Canja do Digão disse...

Boiola

Paty disse...

nossa, dependendo da loja até eu tenho medo, detesto quando as vendedoras ficam coladas em cima de mim p/ me vender... imagine um homem em loja de mulher.... realmente não é tarefa fácil.